Esqueçam se Ronaldo devia ter sido titular ou não, se devia ter sido substituído ou jogado tudo – já passou, já passou. Sobre Pepe não há nada para esquecer porque ninguém questionou Pepe, portanto nem sequer há problema. Mas quem não quer esquecer Pepe e Ronaldo de maneira nenhuma é a ciência – Pepe e Ronaldo, 41 e 39 anos, são humanos além da norma (exemplo: a frequência cardíaca de Ronaldo contra a Eslovénia causou estupefação aos peritos). José Soares, professor catedrático de Fisiologia da Universidade do Porto – e que tem vasta experiência na melhoria da performance de pessoas e equipas em contextos de desporto de alto rendimento -, explica. E é espantoso
Como é que alguém com 41 anos consegue correr durante 120 minutos e perto do apito final fazer um sprint em que é capaz de superar Marcus Thuram, 15 anos mais novo? Vamos começar por aquilo que acho que é importante referir nestes temas: casos como Pepe e Cristiano Ronaldo são exceções, isto não é a regra, ou seja, não é por uma pessoa querer muito que consegue ter esta longevidade a jogar. O que está a acontecer no desporto, mas de uma forma geral na sociedade, é que as pessoas já não querem só viver mais tempo, passaram a querer viver mais tempo mas funcionalmente ativas e também é o caso de um desportista. Ou seja, já não chega a jogar só até aos 28 ou 29 anos ou 30 anos, como antigamente. As pessoas querem ter boa performance durante mais tempo.
Se antigamente não era possível, o que mudou para haver estes níveis de resistência e aceleração nestas idades? Há diferentes aspetos envolvidos. Por um lado, um dos aspetos – que é decisivo – é não terem lesões graves. Este é um aspeto realmente decisivo. Sabe-se que há alguns genes que estão relacionados com aumento de risco de algum tipo de lesões, mas também existe a própria eventualidade do jogo – uma pessoa pode cuidar muito bem de si, ter muito cuidado com o seu treino, treinar muito bem, mas se um adversário dá com os pitons no joelho e o jogador está com o pé preso no chão, a probabilidade de fazer uma rutura é muito alta, portanto também é preciso ter alguma sorte.
Qualquer jovem numa academia de futebol pode ambicionar este registo? Não, isto não é para todos. Primeiro, Pepe e Cristiano Ronaldosão aquilo a que chamamos outliers – casos atípicos – e também é por isso que as pessoas se interessam em perceber o que é que se passa com eles. Acho que há aqui um conjunto de fatores. Segundo, é preciso também ter alguma sorte. Terceiro, é preciso ter bons genes. Quarto, é preciso que cuidem muito bem deles próprios. Acho que são estes fatores que explicam porque é que ao fim destes anos tanto um como outro, com 41 e 39 anos, conseguem de facto performances físicas assinaláveis.
Agora quanto às diferenças entre ambos: ninguém coloca em causa a titularidade de Pepe, Cristiano Ronaldo está sempre sob fogo. Isso deve-se a quê? À gestão ao longo da época, em que Pepe pára mais vezes, à competitividade do campeonato em que estão inseridos, à recuperação, deve-se a quê? Vou dar-lhe a minha opinião, que é não ter opinião. Ou seja, o que acho que acontece muitas vezes, e o futebol é muito fértil nesse tipo de coisa, é as pessoas estarem a falar sem saber de facto o que é que se passa. Eu, por exemplo, não sei, sinceramente não sei, não faço a mais pequena ideia do que é que se passa. Não faço a mais pequena ideia do que é que o Cristiano Ronaldo faz no seu treino – o Pepe vou sabendo -, mas não consigo explicar isso e dificilmente alguém conseguirá. O que acontece é que, eventualmente, a distribuição do esforço ao longo do ano pode ter sido diferente. Há aspetos mais relacionados com a vontade, com a motivação para determinado momento, para aquele momento do Pepe com o Marcus Thuram. Há muitas coisas que interferem e acho que um dos problemas do futebol também é tentar explicar coisas com situações isoladas. É a mesma coisa que do ponto de vista de parar a imagem e ficar ali a explicar e a elaborar um raciocínio muito sofisticado de uma coisa que se calhar aconteceu uma vez no jogo. Aqui, é exatamente a mesma coisa. Acho que não é muito adequado estar a tentar explicar estas comparações por uma ação ou por duas ou três quando há 40 ou 50 ações no jogo. Mas não sei, não sei exatamente qual foi a razão para esta disparidade.
As máquinas e técnicas de recuperação passaram a ser as melhores amigas de Cristiano Ronaldo e Pepe? O pós-jogo é o mais importante à medida que a idade avança? Acho que são. Hoje, a recuperação em qualquer área passou a ser o aspeto decisivo. Até costumo dar um exemplo, três exemplos diferentes. Porque é que os jogadores não treinam oito horas por dia? Porque têm de recuperar. Não é porque não têm tempo. Eles tem tempo, só que têm de recuperar. Portanto, quanto mais rápido recuperarem, mais perto estão do próximo treino. Por exemplo, um doente que está a fazer sessões de quimioterapia, o que é que limita a pessoa a fazer as sessões de quimio? É a recuperação de umas sessões para as outras. Não é toxicidade da droga que limita. Assim como um jornalista ou como um professor pode trabalhar até às duas ou três da manhã, mas porque é que não o faz? É que no dia seguinte temos de estar ambos outra vez disponíveis às oito da manhã.
E qual é a técnica mais eficaz? A recuperação passou a ser o aspeto essencial, portanto os banhos de gelo são um dos fatores da recuperação, mas eventualmente haverá outros. Depois há outra coisa essencial, que muitas vezes não há banho de gelo que resolva, que é a capacidade que estas pessoas têm, por exemplo, de conseguirem descansar. Quando digo descansar é, por exemplo, dormir de uma forma muito eficiente. Porque, repare, qualquer um de nós, quando está muito preocupado e quando as coisas não correm bem na nossa vida, à maioria das pessoas o que é que acontece? Dormem mal e recuperam mal. Estas pessoas têm essa capacidade de desligar, não estou a dizer que seja o caso, mas normalmente é isto que acontece, têm uma capacidade enorme de se abstraírem e de conseguirem recuperar. Vi, por exemplo, o registo da frequência cardíaca do Cristiano Ronaldo, porque foi público – no jogo em que nós fomos a penáltis com a Eslovénia, em que o Ronaldo falhou e depois marcou a penálti – e, após o apito final, a frequência cardíaca desce de uma forma acentuadíssima, é incrível. A literatura descreve este fenómeno como um estado de flow, não sei se terá entrado num estado quase zen para recuperar. Isso não é para toda a gente, não é mesmo para toda a gente.
E como é que se chega a estas capacidades? Pode ou consegue o comum cidadão fazer estas acrobacias cardíacas?Isto é treino, é capacidade mental, é capacidade cognitiva e é genes também, porque nós temos três coisas, como diz o professor Sobrinhos Simões – conceituado médico, cientista e investigador da Universidade do Porto: temos os genes, temos o ambiente e depois temos a sorte. Acho que estas três coisas estão muito ligadas a esta questão da longevidade no desporto. O Cristiano Ronaldo tem bons genes, tem o ambiente, ou seja, o ambiente que é da responsabilidade dele, ele trata-se e trata bem, e o Pepe é a mesma coisa. E depois, pronto, também há alguma sorte. Mas esta capacidade de baixar a frequência cardíaca é uma coisa que é muito treinada, mas é também muito intrínseca à própria pessoa. Há pessoas que acabam por nunca chegar àquele nível. O desporto, como a vida, é feito de seleção natural. Um atleta que não consiga recuperar rapidamente, que não consiga estar disponível outra vez, que não tenha lesões ou que tenha poucas lesões e que consiga, mesmo quando tem lesões, recuperar rapidamente, tudo isto é seleção natural. Um atleta que tenha sistematicamente problemas nesta área nunca vai atingir elevada performance.
Em 100 atletas, quantos Pepes e Ronaldos é esperado que existam? Não sei, mas muito poucos, senão havia mais. Esse é que é o tema. Acho que qualquer jogador gostaria de jogar até mais tarde. Só que a capacidade física deles começa a diminuir – ou porque têm lesões ou porque também já estão muito cansados ou porque, do ponto de vista mental, não aguentam mais aquele stress permanente ou porque já têm uma vida económica confortável e decidem retirar-se. Há muitos fatores, não faço a mínima ideia de quantos são, mas há muitos fatores envolvidos nisto e muitas vezes acho que há uma visão assim muito rápida das coisas ‘ah, porque faz banhos de gelo’, só que eu também faço bem o gelo e não consigo o que eles fazem.
Quantos mais anos têm Pepe e Ronaldo ao mais alto nível? Repare, isto até pode dar azar, mas tanto o Cristiano Ronaldo como o Pepe até podem querer jogar mais três anos. Contudo, se por acaso acontecer uma lesão grave – esperemos que não -, a carreira vai acabar. E, portanto, depende tudo muito disto. Eu gosto destas três imagens, que é genes, ambiente e sorte. Os genes, eles mantêm-nos. O ambiente, se continuarem assim, também o mantêm. Se tiverem alguma sorte, acho que vai se calhar dar mais para mais algum tempo.
Por: CNN